Inscrições Abertas em caráter de lista de interesse.

Inscrições Abertas em caráter de lista de interesse.
Inscrições abertas (clique na imagem) em caráter de lista de interesse. Previsão de início: abril de 2014.

Crônicas de campo

As crônicas são registros de impressões de campo, formam uma coletânea que está sendo publicada e impressa semanalmente no Jornal Correio Trespontano.

A epifania de Alice





A crônica dessa semana trata de uma diagonal: um traço entre corpo e material. Assunto dos mais densos em minha pesquisa de doutoramento. Coisa que exige estudo e observação. Ainda estou longe de poder dizer  desse imbricado agenciamento. Por hora, segue apenas a narração fabular de alguns efeitos possíveis. A personagem Alice é baseada em pesquisa de campo, realizada aqui em Portugal, acrescida de uma tardia homenagem à  bailarina-performer Ludmila Machado, as cenas de seu "Entrelinhas" fazem parte de um vídeo que acompanha meu artigo no livro: Entre composições: formação, corpo e educação.  O espetáculo, a partir da interpretação de cada uma das ações de trabalho das fiandeiras, realiza uma leitura dinâmica da gestualidade das artífices da fiação. 



Sem que houvesse se dado conta, estava hipnotizada por aquele movimento de corpo. Bem à sua frente, a mulher, de traços grosseiros e mãos grandes, curvava-se em direção à roda. Movia-se ritmadamente, repetindo sempre o mesmo gesto, enquanto falava, explicando sobre seu ofício.

Alice não prestava atenção às palavras, o corpo dizia tudo o quanto ela conseguia ouvir. As palavras eram como ruídos, um ruído a mais em meio a muitos: o sapato da mulher a bater na tábua do chão, a tábua rangendo uma ou outra vez, a engrenagem do fuso sem óleo, a roda assoviando ao girar. 

Aquele som a fazia lembrar de quando o irmão e ela brincavam com a bicicleta coxa do Tio Vicente. Viravam-na com a única roda para cima e, dando impulso, ora com a mão no pneu ora com o pedal, faziam-na girar o  mais depressa que podiam. Logo a mãe, escutando o barulho do giro, gritava da cozinha, vão perder os dedos nessa brincadeira!

Lembrava-se disso, enquanto o zunido da roda de fiar cortava o ar, em meio às palavras de Dona Vitorina Fiandeira, naquela tarde de maio, na visita em que fez com a prima noiva, a encomendar manta para o enxoval. É de pura lã, Alice, feita sob medida, a da loja nem se compara... 

Foi quando aconteceu. Anos mais tarde, quando lhe perguntaram o porquê, ela não soube explicar bem, mas sabia que tinha sido ali, entre palavras surdas e o zunido da roda.

Já se passavam mais de dez anos e a imagem ainda lhe era clara, via a cena completa à sua  frente: enquanto uma das mãos da mulher pegava o manelo de lã do cesto, a outra parava a roda de fiar. Em seguida, ajeitava o fio torcido no fuso, unindo a ponta solta da maçaroca a um novo chumaço. Então, ainda curvada, dava um grande passo para trás e fazia a roda girar, enquanto o manelo de lã em sua mão desaparecia, fazendo surgir o fio. Cada manelo rendia-lhe uma boa metragem de fio fino, surgido de um movimento contínuo, de uma certeza de corpo que a hipnotizara. Aquele corpo, aqueles gestos, algo ali fez desaparecer o tempo. Não sabe quanto permaneceu nesse devaneio, mas o instante tornou-se sempre. 

Quando a prima a cutucou, despertando-a do transe, ela  soube. Tivera uma epifania. Soube o que faria por toda vida. Soube que nada mais a interessaria dali para frente a não ser descobrir como aqueles gestos eram capazes de plasmar-se corpo. Como aqueles movimentos se deixavam conduzir pelo material. 

A campainha soou avisando que faltavam cinco minutos para o primeiro ato. Precisava terminar de maquiar-se e aquecer-se. Amarrou as sapatilhas ainda ouvindo o chiado da roda.



A ser impresso e publicado em 14 de dezembro de 2013.


¨*¨

Alma de atriz

A crônica dessa semana traz uma personagem inspirada na música Alma de atriz,  de Haroldo Jr. ( 1963 - 4 de novembro de 2013 ).



Levantava-se antes do sol. Quando escutava o alarme do despertador, um frio percorria-lhe a coluna. Mais um dia.  Sempre assim.  Colocava-se sentada na cama e imediatamente pensava naquilo que não era. Antes mesmo de abrir a janela sabia: não aconteceria jamais.

Fazia um pequeno verso que havia aprendido com o irmão quando pequena.  Não lembrava se algum dia tivera rima, com o passar dos anos, fora mudando-o,  tomando posse das palavras dadas, tornando seu o dito de outrem. Agora, não sabia mais o que era dela,  o que era do autor. Quem mesmo?  Algum dia soubera...

Respirou fundo como que se preparando para entrar em cena, a cena de mais um dia sem luz ou cenário. Balançou a cabeça a espantar os pensamentos tristes e recitou mentalmente: "Há sol em mim"... fazia um esforço para que não fossem apenas palavras... "A vida é bela"... queria convencer-se disso... "Eu nasci para amar"... teve um tempo, que não conseguia declamar esta parte sem deixar cairem as lágrimas... "Só faço o bem"... Era a parte da poesia com a qual podia concordar sempre. Se considerava uma pessoa boa, o que nunca evitava que fosse agredida ou desprezada constantemente. Pensava em tudo pelo que sempre passava e tinha que se esforçar para não cair no choro, um nó apertava-lhe a garganta... Para se controlar,  repetia o verso inteiro, desde o início, concentrando-se bem: "Há sol em mim, a vida é bela, eu nasci para amar. Só faço o bem. Só me fazem o bem"... repetia aquela última frase,  suplicando para que se tornasse verdade.

Desde que o irmão a deixara, após uma longa batalha contra à doença,  tomava seu desejum sozinha. Na noite anterior ajeitava a mesa, para poupar-lhe qualquer correria pela manhã. Não suportava ter de apressar-se para fazer o que não gostava.

Sentia o cheiro do café ficando pronto na cafeteira. A mãe nunca aprovara café de cafeteira, não tinha gosto, dizia. Reclamava sempre que Tia Carminda,  a única a ter cafeteira elétrica na família,  lhe oferecia.  A mãe tomava fazendo caretas e a tia ria uma risada gostosa, achando graça na rabugice da irmã.  Fora aquela risada aberta que, anos mais tarde,  quando a mãe se fora,  a levou a comprar a cafeteira vermelha brilhante.  A mãe não iria aprovar,  dizia o irmão,  fazendo um trejeito com a boca que quase parecia um sorriso. Ela sabia, e era isso que, ainda hoje, fazia do momento em que o aroma exalava, um pequeno êxtase.

Êxtase que sentira na noite do festival, quando fugida de casa,  subiu ao palco do grande teatro. Lá, sentiu pela primeira e única vez que estava viva. Não importara que a mãe havia descoberto e mandara o irmão a buscar.  Não importara que houvessem dito que jamais passaria no teste. Estar ali, flutuando em luz, era puro êxtase. 

Nasci para viver sob a luz de um refletor, respondia, quando era entrevistada, na sua vida de fantasia, enquanto deixava a água fria molhar-lhe a pele enrugada. Para o espanto dos jornalistas, sorria, um sorriso aberto como o da tia, e dizia: se me acende o fogo, faço o dobro de mim. Os flashes disparavam e terminava a entrevista com uma frase que,  sabia ela, se tornaria destaque: o amor é um palco,  tem de encenar sem ter ensaio... fechava a torneira, as últimas gotas que escorriam lavavam o sal das lágrimas. Tinha de apressar-se, o novo gerente não tolerava atrasos.

A ser impresso e publicado em 7 de novembro de 2013.



¨*¨

Sentada sobre uma pedra


Quais os critérios para se avaliar um profissional de educação? As avaliações cada dia mais acirradas e numerosas, têm promovido uma ênfase nos critérios objectivos da profissão. Desde a selecção, aquilo que é possível de ser numerado, ponderado e tabelado é mais valorado do que o sensível, o entusiasmo, o subjectivo. O que isso promove e como isso se reflecte em sala de aula? 


Sentada sobre uma pedra, olhou em volta e viu toda gente a preparar a festividade. Era aguardado um grande acontecimento. O padre Laureano há muito ansiava por aquela quermesse.  Sentava-se ali a olhar o movimento e não podia evitar pensar o quanto gostaria de estar animada também, mas por mais que quisesse não conseguia envolver-se de corpo inteiro no evento, ia-lhe um peso na alma. Estudara tanto. Havia se dedicado completamente nos últimos meses àquele exame. Era sua grande chance. Sabia cada palavra do lido. Se quisesse, mesmo de olhos abertos, podia ver onde ocupava cada assunto nas páginas dos livros. Empenhara-se em fotografá-los mentalmente.

O que acontecera então? - perguntava-se, no instante mesmo em que um nó apertava-lhe a garganta. Uma sensação de opressão e uma espécie difusa de dor latejava em seu peito, entre o pulmão e o coração. O que acontecera? - repetia, buscando entender. Se sabia tanto, por que então não havia passado? Será que não bastava o estudo?  As horas de dedicação? O tudo mais que não fez? Será que não bastava saber?  

Há pouco, ainda incrédula com o resultado,  fora perguntar ao Sr. Delawey o que fizera de errado. O velho catedrático inglês, respondeu-lhe, a resmungar,  entre surpreso e indignado que, se não havia alcançado a nota necessária para passar, era porque seu estudo não tinha sido eficiente. Tentou argumentar, alegando que sabia os pontos de cor, que havia acentuado as perspectivas históricas de cada época,  que entendia as relações,  os efeitos provocados. Olhando-a com espanto, o professor decano cortou-lhe a palavra rispidamente dizendo: a História, minha filha, é a Ciência dos fatos. Não se faz Ciência com opiniões, muito menos com  sensações,  e sim com o registro exato dos documentos: nomes, fontes e datas - eis o que faz a História. Há outras maneiras de entender, rebatia ela, mentalmente, essa concepção de história pode ser um mito. Poderia contrargumentar, baseada em Certeau, mas não achou que valesse à pena.

O fel do ressentimento fez doer-lhe o estômago. Lembrou que não havia comido nada desde o início da manhã, hora em que ficou sabendo do resultado da prova que adiaria, talvez para sempre, o sonho de tornar-se uma professora de Jardim de Infância. A mãe lhe havia alertado,  deixa de sonhar alto, rapariga, aceita o trabalho na casa do intendente Agenor e larga essa pretensão de estudo. Isso não é para ti. Lembrava disso e os olhos enchiam-se de lágrimas. O que ciência tem a ver com educar aos miúdos? 

Pensava na prova do concurso. Com que intensidade redigiu o texto sobre a História da Educação. Era como se estivesse tomada de um incrível desejo. Organizava as ideias com uma lucidez e entusiasmo que só sentira,  até então,  nos meses em que fizera estágio na escola de educação infantil do Conselho em que morava. Animava-lhe a perspectiva de que o saber bem construído,  vivo, poderia fazer da sala de aula do jardim uma usina geradora de vida. Era nesses termos que pensava a importância da História da Educação para o ensino infantil.

E agora,  estava ali,  sentada sobre a pedra fria, olhando a alegria de fora. Chorava, lastimando-se pela ingenuidade do idealismo. Culpando-se pela falta de inteligência e percepção para saber que, no concurso para seleção de professores, a História da Ciência da Educação se faz com datas, nomes e fatos. E é isso que importa para se estar com os miudos.


Para ser impresso e publicado em 30 de novembro de 2013.

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A bordadeira viajante






            Sentada nos fundos da carruagem,  ia pensando em quantas vezes havia feito aquela mesma viagem no último ano. Uma rotina que se repetia semana após semana: levantar antes do sol,  vestir-se em silêncio,  ir à casa de banho sem acender as luzes para não acordar ninguém. Depois, andar pela rua escura até à estação,  aguardar na plataforma fria que o comboio chegasse e embarcar rumo ao conhecido. Se, pelo menos, o itinerário variasse, pensava ela, um pouco rabugenta, esquecendo-se, por um momento,  que estava realizando um sonho há muito desejado, que estava a fazer exatamente o que mais gostava.

Repetia aquela viagem todas as semanas nos últimos anos,  ia de Lisboa a Porto, no primeiro trem e, dezesseis horas depois, voltava no último. Chegava em casa exausta, depois de ter passado o dia todo e parte da noite a dar aulas de bordado na histórica Loja dos Bordados do Porto.

As raparigas entravam no bonito salão nos fundos da loja, com suas caixas de costura decoradas, orgulhosas ou apreensivas pelas tarefas que haviam realizado, durante o intervalo de uma semana,  entre uma aula e outra. Vinham mostrar-lhe o desenvolvimento do trabalho. Traziam o bastidor tensionado, tecido rijo entre as madeiras circulares. Os pontos formavam pequenas filigranas coloridas que, na maioria das vezes,  pouco expressava quem os fazia.

Quando, ao invés de lições de casa regulares e corretas,  percebia, em um bastidor, alguma expressividade,  algum traço de inventividade, não conseguia evitar, seu coração acelereva e, sabia, traía a neutralidade de sua expressão,  com um meio sorriso que comprimia o canto direito da boca e a fazia, irresistivelmente,  morder de leve o lábio inferior. Era sempre assim, não conseguia evitar. As alunas mais antigas já a conheciam suficientemente para perceber seus trejeitos e cochichavam quando acontecia.

Naquela manhã,  havia se comprometido consigo mesmo que ficaria atenta para que isso não acontecesse. Precisava manter a aparência de instrutora compenetrada e neutra.  Não deves nunca levantar a voz, dissera-lhe o contratante,  Sr. Coutinho Ventura,  ao lhe instruir sobre os hábitos e práticas da Escola Oficinal Feminina, orgulho da Loja de Bordados de Porto,  desde 1743.

 A família Ventura tem formado moças prendadas desde o Império,  para nós uma instrutora de bordados é o mesmo do que uma religiosa.  Deve educar, sem jamais demonstrar seus humores.

Catarina tinha mantido a compostura desde então, já iam quase nove anos, exceto por aquele discreto morder de lábio. Era impossível para ela manter-se indiferente ao perceber que a genialidade, o gosto e a vontade de viver haviam permeado,  ao mesmo tempo,  o bordado de uma aprendiz. Mordia o lábio discretamente,  mas o que estimava mesmo fazer era pular de alegria e gritar: estão vendo, estão vendo?  É possível fazer sangrar o tecido! É possível vibrar o corpo entre linhas e agulhas.

Nesses momentos sentia o corpo esquentar, a respiração entrecortava,  o coração descompassava. A emoção que sentia era a mesma, sim, a mesma,  de quando Joaquim a beijou daquela única vez. Era como se o tempo parasse, como conhecer de perto a eternidade.

Naquela manhã,  uma jovem, com um coque impecável aproximou-se, pela primeira vez de sua mesa para receber a avaliação semanal. Pedia internamente que, acontecesse o que acontecesse,  não expressasse nenhuma emoção. Foi quando viu a incrível e terrível mancha entre um rococó e um nó francês. Desculpe-me, professora,  magoei-me com a agulha ao fazer o ponto aste. Logo abaixo da mancha,  um ponto novo, indescritível,  formado por uma miscelamiscelânea de fios entrelaçados.  Uma composição única. Uma forma original.  Sabia que não havia sido descuido,  sabia que não tivera sido acidental. Era pura criação,  inventividade e originalidade.  Instintivamente,  cobriu o rosto com as mãos.  Só assim, evitaria que lhe vissem a expressão. O que seria de sua carreira de instrutora de bordados quando não mais pudesse esconder-se?

A ser impresso e publicado em 23 de novembro no Correio Trespontano.


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A vertigem e o rigor


Essa semana, conheci uma  doutora renomada e apaixonada pelo que faz. Trabalha com pesquisa, coordenando um importante departamento na Universidade Nova de Lisboa.  Sob sua supervisão, pesquisas potentes são realizadas, evolvendo cultura e linguagens. Entre elas, as narrativas que circundam as artes manuais, razão pela qual aproximei-me de seu programa. Atenciosa, recebeu-me em seu moderno gabinete, confidenciando-me que, hoje em dia, é bastante difícil encontrar pesquisares das artes manuais, pois a maioria nem sabe o que é retrosaria.  Ao ver meu caderno-projeto de primeira qualificação todo bordado e com partes escritas à mão, perguntou-me: e os colegas? O que dizem dessa forma de expressão? Aprovam ou acham que falta rigor?

***
Só quem a conhecia muito de perto, o que era raro, poderia perceber, no movimento leve que fazia, batendo a ponta do lápis na capa do livro, um quê de impaciência. Há muito acostumara-se a manter-se impassível, mesmo quando, no íntimo, queria estremecer. O aluno demorara demais para encontrar a página e continuar a responder à arguição. Já passara de uma da tarde e as taças de café preto que ingerira durante a manhã começavam a causar-lhe indisposição.

Sentia-se duplamente frustrada. Primeiro, diante da demora no andamento da banca, depois pela própria estrutura de avaliação que desaprovava. No entanto, sempre fora voto vencido nos encaminhamentos dados pelo Programa de Pós-Graduação ao qual pertencia.

Sem dúvida, pensava, levando a mão ao estômago dolorido, não se pode avaliar alguém pelo número de horas que é capaz de ficar na biblioteca.

O aluno voltara a falar e ela descobriu-se com fome. Se demorar, a cabeça vai começar a doer. Era sempre assim: tomava café demais, comia de menos e depois ainda precisava recorrer aos analgésicos para dar conta de chegar ao final do dia com as tarefas acadêmicas cumpridas. Esse ritmo de trabalho não considera as mínimas necessidades de comer e dormir, reclamava para si, enquanto, e ao mesmo tempo, atribuía o mal humor à baixa de glicose que começava a se fazer sentir pela irritação excessiva.

Já nem escutava mais o colega que, dedo em riste, questionava o avaliado sobre sua falta de rigor ao usar um conceito. Rigor, rigor! Tivesse ela a coragem de dizer - ali mesmo em uma banca de seleção para o doutorado - o que pensava dessa vontade de rigor. Bandeira que muitos acadêmicos levantavam em nome da moral e dos bons costumes do conhecimento. Ia desmaiar. Sabia. Começava a ver pequenas luzes brilhando pela sala de defesa. A vertigem crescia: era cansaço demais.

Sentiu um calor agradável e conhecido a envolvê-la. Abriu os olhos devagar. Viu, na luz suave da tarde de inverno, a mãe e a avó, sentadas, cada uma de um lado, tendo ao colo o grande tapete que bordavam juntas. O calor do tapete em seu colo, o cheiro da juta e a aspereza da lã a faziam querer desmaiar. A vertigem crescia: era prazer demais, não podia aguentar-se. Nessas momentos, ouvia a voz da mãe a dizer-lhe: Ma chère, passe-moi les ciseaux, s'il vous plaît. Assim, sempre que se perdia em sensações, a mãe, carinhosamente, usava o francês para despertá-la. Era como a lâmina afiada da tesoura no tecido, cortava sem ferir. Dessa maneira, sem perceber, aprendeu o francês, a costura e o bordado.

Um leve toque em seu braço a trouxe de volta à sala de defesa. A sessão terminara, iriam deliberar. Seu voto a favor e dois contras: não aprovado, faltava-lhe rigor. Teria coragem? Sabia que não. Doze anos! Era o quanto restava para aposentar-se.

A ser impresso e publicado em 26 de outubro no Correio Trespontano.



A diagonal atelier-cozinha




Em Lisboa, bem ao lado da Catedral da Sé, no centro histórico da cidade, tem uma loja de peças em lã de carneiro que faz parte do meu itinerário de pesquisa:  a ChiCoração - Sé.  A proprietária, Otília Santos, é uma daquelas mulheres que conseguem agenciar a vida-viva em sua plenitude sem deixar de afirmar o caos cotidiano de uma vida de empresária, artista e dona de casa. A crônica de hoje é uma ficção inspirada em seu cotidiano e será a chamada do capítulo da tese que trata dos processos  metodológicos que adoto na pesquisa de doutorado que realizo na Universidade Federal de Juiz de Fora e na Universidade de Lisboa.


***


Os alfinetes na boca espetavam-lhe vez ou outra a língua. Gostava daquela dor, lembrava-lhe de que estava viva. Não a deixava esquecer de que afrouxar as fronteiras entre ser dona de casa, empresária e artista da moda, era quase sempre caótico, doía, custava, mas a fazia sentir-se viva.

Lutava para dar caimento a uma gola, mas a malha teimava em seguir outra direção. Há muito sabia que, não adiantava o que fizesse, a malha sempre vencia.  Naquelas horas, atribuía a teimosia da gola ao curso de design que nunca frequentou. Bobagem, dizia depois, de si para si, as estagiárias de moda que cá estiveram, tinham  desenhos perfeitos e elaborados, belas ideias, mas não sabiam como fazer para que saíssem do papel. Por isso, respirou fundo e deixou-se levar pelo fluxo da malha. Queria tanto a gola de um certo jeito... ideias. Pudesse ela trabalhar sem ideias prévias. Somente entrar em contato com os elementos e deixar-se conduzir junto ao movimento e, aí sim, abrir-se às ideias....

Um cheiro forte invadiu o atelier, situado logo abaixo da cozinha, na grande casa, em frente a Serra de Santo Antônio. O arroz! às pressas, cuspiu os alfinetes em cima da mesa, deixou a malha fazer o que bem quisesse e subiu as escada de um fôlego só: tarde demais! Pegou a panela fumegante pela alça, queimando um pouco a mão. No sumiço repentino do pegador, agarrou o pano de prato e completou o trajeto até a pia. Lançou um jato de água sobre a pedra fria, pousou a panela quente sobre ele e escutou o chiado com um misto de encantamento e desespero.

Tarde demais! mais uma vez, o arroz queimado! O marido tinha razão: estás sempre com a cabeça à lua, mulher! Ainda   tentando raspar a crosta queimada do fundo da panela, lembrou-se de que havia esquecido de acrescentar arroz à lista de compras. Foi o último.  Faria macarrão. Um bom macarrão instantâneo resolveria o jantar. 

Então percebeu, no movimento da água sobre a panela, a solução: está lá! A gola! Sim, basta-me isso e a malha cairá de maneira especial. Desceu as escadas rumo ao atelier aos saltos de dois em dois, agarrou os alfinetes em cima da mesa, um deles a espetou bem em cima do recém-queimado da mão. Sentiu dor, sentiu vida. Está cá: a gola caidinha, não do jeito que havia imaginado como ideal, mas ainda melhor: o perfeito possível.

Estava alegre quase eufórica. Criar o possível! Era isso que a mantinha plena e viva. Cozinharia um macarrão chinês com legumes e soyo para o jantar. E acenderei as velas. Uma grande noite!

Se o marido perguntasse o que estavam celebrando, com o jantar especial, apenas sorriria. Ele não entenderia a alegria que se dá na mistura de um arroz queimado com gola de malha, queimadura e espetadas. Difícil explicar a potência que sentia.



Para ser impresso e publicado em 19 de outubro de 2013 no Correio Trespontano.


*** 


A varina do Tejo



Uma réstia de luz atravessa o madeiramento da janela, avisando que o tempo passou. Por um breve momento, assusta-se, pensando ter perdido a hora, mas lembra-se que está acamada. A garganta doía-lhe e um leve calafrio percorria-lhe a espinha.

Estava na cama, sob as cobertas, mas o corpo sentia falta do vento e do rio. Acostumou-se a acordar antes do sol e ir para a margem esquerda do Tejo, no cais da freguesia, aguardar as pequenas barcas e faluas que trariam os charrocos, bogas, douradas, corvinas e pardelhas que vendia, no ponto em frente ao liceu, desde que era miúda e franzina.


Todo dia, nos últimos 35 anos, quando a vila ainda despertava, já estava ela, com seu avental de burel, sentada em seu caixotinho de madeira, ordenando os peixes por tamanho e espécie, na padiola que Seu Gerônimo, biscateiro, ajudava-a a montar por cinco escudos. 

Virou-se na cama e pensou, estava velha, o corpo doía-lhe inteiro. Além disso, continuava a divagar, havia mais de dez anos que as moedas de euro começaram a circular na sua banca e ainda confundia-as com as de escudos, as quais sabia reconhecer até de olhos fechados. As moedas de euro, arrazoava, eram desprovidas de história, símbolos vazios, não pareciam trazer em si uma força monumental,  faltava-lhes alma.

Deixa de besteira, disse, dando uma raspanete em si mesma, agora deu para bacorar? Está lá, que não vá trabalhar, mas aproveite o tempo para dormir ou fazer coisa que o valha. 


Riu sozinha, era como ouvir a voz da mãe, sempre a chibar. Sentia falta, acostumara-se aos raspanetes da velha. Ainda muito novinha, ao ver passar as meninas do liceu, com suas fitas engomadas e seus livros de capa dura, costumava dizer para à mãe: dia desses, desmonto a padiola e vou para a escola. Não ia, a mãe sabia e ralhava. O cheiro do peixe impregnava-lhe a vida. Nunca seria menina de fita brilhante e saiote plissado.

E assim, a vontade de deixar a banca foi amainando, o tempo passando. A vida escorreu junto com a água do balde que usava para lavar a calçada no fim da tarde quando a venda cessava.

Um espirro trouxe-a de volta ao tempo do dia. Precisava levantar-se e preparar alguma coisa para comer. Não deu jeito. Ficou na cama, entre dores presentes e passadas. Variando as ideais entre os tempos do agora e do ontem.  



Vila Franca de Xira, Portugal, 10 de outubro de 2013. 

A ser impresso e publicado em 12 de outubro de 2013 no Correio Trespontano, Minas Gerais, Brasil.


 Cheiro de lã



Dona Vitoria Maria, a última fiandeira em atividade na região de Mértola,  Alentejo português foi minha primeira entrevistada na série que tenho planejada para a fase portuguesa da minha pesquisa de doutoramento. Dona Vitorina aprendeu o ofício com a mãe, hoje com 94 anos, permanece atenta à lida da filha: "Fui eu quem ensini". Dona Perpétua Maria, orgulhosa do ofício, não sabe como aprendeu. Estava lá, com a mãe, desde pequena, fazia uma coisa e outra, aprendia-se na lida. Ainda hoje, está Dona Perpétua a fazer as meadas no sarrilho. Acima, Dona Vitorina Maria esguedelhando a lã, antes de untar e cardar. Fases que antecedem e preparam a lã para ser fiada.


Quando a penumbra não lhe permitia mais enxergar, ela acendeu a lamparina com um gesto que a fazia lembrar da avó. Parecia ver, pensava, a mão da avó, magra e enrugada, a riscar o fósforo e o aproximar da mecha com um movimento levemente trêmulo.

Agora, ela mesma era a avó. Olhava sua mão a gestuar e não entendia como aquelas mãos fortes, acostumadas ao trabalho, haviam se tornado assim, tão magras, enrugadas e trêmulas.

O tempo é sonho, dizia de si para si. É sonho, repetia, enquanto a luz bruxuleante da lamparina enchia o quarto onde, desde muito miúda, via a avó e a mãe a fiar. A vida toda acostumou-se a ouvir as vozes das mulheres de sua família, reunidas naquele quarto pequeno e entulhado, a cuidar da lida do fio. 

Quando o velo chegava do campo, trazido pelo pai ou pelo tio, o cheiro forte do rebanho preenchia o quarto. A mãe e as tias logo tratavam de lavar a lã na velha tina de madeira que ficava no quintal de trás. Depois de seca, batiam-na  para terminar de soltar os ciscos,  esguedelhavam-na com os dedos ágeis e a  arrumavam em camadas no chão, em cima da lona amarela, para o banho de óleo. Ainda podia ver o riso da avó quando ralhava com tia Eulália por deixar manchar o vestido ao untar de azeite a lã.

Foi tia Eulália a primeira a deixar a lida. Um dia gritou com a vó, lembrava-se bem, coração ainda aos pulos: "Vou-me embora estudar!". A tia bateu a porta atrás de si e só voltou tempos depois para apresentar tio Geraldo e o bebê Jessé.

Também as outras  tias se foram. Por muito tempo, só se ouvia o barulho da carda da mãe e da vó. Passados anos, a cardação da vó silenciou. Ela ficava lá, quieta, olhando a mãe passar a lã de uma pá a outra e armazenando no colo o amontoado das nuvens que virariam fio.

O cheiro da lã, o ruído das cardas e o girar da roda a envolviam. Quando mocinha,  também ela tentou ir,  mas o quarto não a deixava. Não podia imaginar a vida fora dali. Assim, desde muito, estava só entre a lã e os fios.

Mértola, domingo, 29 de setembro de 2013.

Impresso e publicado em 5 de outubro de 2013 no Correio Trespontano, Minas Gerais, Brasil.



As artes perdidas





A importância dos trabalhos manuais no currículo Waldorf leva em consideração os diferentes modos de existir produzidos a partir do contato com o produto industrializado e o produto feito à mão. A mera imperfeição de trabalhos manuais é uma marca de dignidade e é testemunha das limitações que fazem do artesão - e por extensão de todos nós - um ser humano único. Quando o aluno dos primeiros anos do Ensino Fundamental faz um forrinho redondo de crochê... inevitavelmente haverá falhas e correções e revisões são feitas. Essas fornecem lições em humildade - no sentido original da palavra - derivada do latim humus que significa 'terra'. A experiência de falibilidade do aluno é uma experiência que envolve seu relacionamento com o resto da natureza. É este relacionamento, esta conexão, que Rudolf Steiner, idealizador da Pedagogia Waldorf e outros pensadores de sua época perceberam que a máquina poderia alterar.


Triste nome: artes perdidas. Mais triste ainda é ver as artes perderem-se onde elas mais deviam ser preservadas: sua origem, como é o caso aqui da Europa. São chamadas artes perdidas os trabalhos manuais e/ou domésticos em que as pessoas se envolvem com as mãos e que estão se perdendo neste mundo de tecnologia e terceirização de serviços.

Atividades como costura, culinária, organização da casa, bordado,  jardinagem, tricô, crochê, carpintaria, entre tantas outras, são cada vez menos presentes no dia a dia das pessoas e, por isso mesmo, consideradas artes perdidas.

Na educação convencional, as  artes feitas pelas mãos humanas são pouco ou quase nada valorizadas e assumem um lugar de menor importância no ensino escolar. As poucas manualidades que ainda não se perderam completamente entram para o currículo como recurso lúdico ou apoiativo e não como parte importante do plano de ensino.

É o caso da jardinagem e dos plantios para os estudos do meio, as atividades de ecologia e educação ambiental.

A educação Waldorf é citada  como um dos poucos exemplos onde ainda pode se encontras os trabalhos manuais como parte integrante de um programa educacional. Lugar que ocupam na medida exata de importância das demais disciplinas. Mesmo assim, nos últimos anos, até nas escolas Waldorf, as artes manuais vêm perdendo  território e tempo em sala de aula. E um dos principais motivos dessa perda de valor é a pressão dos sistemas avaliativos institucionais que, ao enfatizar mais o conteúdo intelectual do que o conhecimento corporal e intuitivo, acabam, em última instância, homogeneizando os conteúdos disponibilizados e as vivências que são oferecidas pelas escolas aos seus alunos.

A perda das artes desinveste o ser de sua capacidade de individualização. Cria modos de existir submissos ao consumo. O mundo passa a ter valor de compra, pois só pela compra o ser pode estabelecer contato com seus pares e sua cultura. A pergunta que cabe fazer é: a quem favorece esse tipo de estrutura social? Certamente, não aos alunos que perderem a arte.  

Vila Franca de Xira, quinta-feira, 27 de setembro de 2013. Impresso e publicado em 28 de setembro de 2013.

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